Maria Júlia Monteiro Dias não é famosa nem tem o rosto estampado nas revistas, mas faz de todo mundo amigo íntimo e prefere ser chamada de dona Julinha. Cabocla retada, como ela mesmo se descreve, cheia de casos para contar e de orgulho de suas origens, ela acaba de ter sua história de vida registrada pelo Museu da Pessoa, que esta semana encerrou a Caravana do Vale do Jequitinhonha dentro do projeto Memória dos Brasileiros. A expedição, que partiu de Porto Seguro e lá topou com nossa personagem, visitou 12 cidades, em dez dias, e recolheu 17 histórias que, em breve, vão virar livro.
Dona Julinha, 83 anos, foi uma das escolhidas como entrevistada da equipe de dez pessoas que partiu de São Paulo rumo a um pedaço do Brasil de verdade porque nasceu e se criou na cidade onde este país foi descoberto. Segundo, porque mistura, em seus traços, cultura e saberes um pouco da mistura das raças de nossas gentes. Terceiro, porque é uma mulher comum, que trabalha, dorme, acorda e sonha como qualquer brasileiro. E essa é a matéria-prima com a qual trabalha o Museu da Pessoa, desde que foi criado, há 15 anos, reunindo hoje mais de sete mil histórias no seu acervo.
Ela, que não sabia da existência do museu, ficou emocionada com a idéia. “Achei a coisa mais perfeita do mundo. Há muito tempo que eu queria relatar tudo o que aconteceu aqui desde que eu era menina e as histórias que meu pai, que era caboclo, me contava”, fala. Do pai caboclo, da mãe descendente de índios de um lado e de portugueses de outro, a mais original mistura.
“Estudei pouco, mas aprendi muito com a vida”, diz entre um verso e outro que aprendeu a recitar com o pai, entremeados por sorrisos e pedaços de histórias capturadas inteiras pela equipe do projeto.
De Porto Seguro para o Vale do Jequitinhonha, a turma coordenada pela historiadora Cláudia Leonor seguiu colhendo outras histórias. Casos, contos, sofrimentos e belezas da vida de muitas marias, josés, anas e franciscos, cheios de sotaques, na fala e no comportamento, que sobrevivem de seu trabalho e se alimentam de sua cultura. Quando perguntada sobre a avaliação da experiência, a pesquisadora, que também coordena o projeto e tinha acabado de retornar para sua cidade, chora. “É impossível voltar para São Paulo sem ter sua vida transformada... depois de ver, apesar das adversidades, as pessoas vivendo com tanta alegria”. Para Cláudia, o que mais sensibiliza é a percepção plena que os entrevistados possuem da riqueza cultural de que são donos e a preocupação deles em ensinar tudo para os mais jovens. “Penso que também é uma forma de resistência”, comenta.
Cláudia lembra de algumas preciosidades do Vale, uma das regiões com os piores índices de desenvolvimento humano do país, mas também dona de algumas cidades de beleza rara, com riquíssimo patrimônio histórico-cultural. É só lá, por exemplo, que se podem ouvir os vissungos entoados por seu Crispim. Canto de trabalho de garimpo e canto fúnebre, o vissungo só existe hoje em um distrito da cidade mineira do Serro (Milho Verde) e em outro de Diamantina (São João da Chapada, na comunidade quilombola de Quartel do Indaiá. No Vale estão também as bonecas que dona Isabel, de Araçuaí, aprendeu a moldar ainda menina e que acabam por tomar suas feições, ou as rezas de Dona Ducha, entre um bocado de outras preciosidades.
Acervo virtual - Além da Caravana para o Vale, outras já passaram pelo Amazonas e pela região do Parque Nacional da Serra do Cipó, em Minas Gerais. Em pouco mais de um mês, outro grupo parte para o Vale do São Francisco. Com o Memória dos Brasileiros - dividido em Saberes e Fazeres, Brasil que Muda, Brasil que Precisa Mudar e Brasil Urbano - o museu quer constituir um acervo virtual sobre a identidade do Brasil de hoje, baseado na história de vida dessas pessoas. O patrocínio da AmBev, Toyota e da Avon, além de viabilizar as caravanas, vai permitir também transformar os resultados em produtos.
No museu, ficam arquivadas fitas com áudio e imagens de tudo o que é capturado nas viagens, sendo que boa parte do material é disponibilizada no site (www.museudapessoa.com.br). Mais que isso, até o fim deste ano o museu publica o livro Memória dos brasileiros, com alguns dos depoimentos mais significativos da frente Brasil que Muda – à qual pertence a Caravana Vale do Jequitinhonha. O livro terá distribuição gratuita para bibliotecas públicas, centros e associações culturais. Na frente Saberes e Fazeres, bastante esperada é a publicação de um livro-almanaque, destinado ao público juvenil, com um representante de cada estado do país. O museu também está em negociação com as redes públicas de televisão para a exibição de 48 programetes, de um minuto de duração, compondo a série Recortes de Memória.
Cada um conta um conto
O Museu da Pessoa, há 15 anos, ouve e registra em seu acervo a história de vida de pessoas comuns. Organização Social de Interesse Público (Osip), defende que toda a história de vida tem valor e que deve fazer parte da história social. “A gente vive uma overdose do culto à celebridade e acaba se esquecendo dos verdadeiros guardiões de saberes e conhecimentos”, observa o diretor do museu, José Santos. Ele e sua equipe costumam brincar dizendo que, caso houvesse uma hecatombe e, futuramente, arqueólogos escavassem o que um dia foi o Brasil encontrando aqui algumas revistas ou programas de celebridades, a imagem do que é o país seria totalmente distorcida.
Abrindo seus canais para pessoas que registram histórias que antes poderiam se perder – a tradição oral, cada vez com mais ruídos, pouco resiste a televisão, computadores e outros apelos contemporâneos – o museu parte em busca da construção de uma memória outra, que priorize o registro do comum, com toda sua singularidade. No Museu funciona também um Ponto de Cultura, espaço aberto em que toda e qualquer pessoa pode registrar sua história de vida e consultar o acervo. O Ponto funciona ainda como disseminador de metodologias de memória oral do Museu da Pessoa e articulador de iniciativas de memória de outros pontos de cultura e de ongs.
Qualquer pessoa pode também se cadastrar no site do museu, contar sua história, enviar arquivos de texto e de voz, imagens e outros registros, além de participar de alguns dos programas voltados para pessoas e instituições que valorizam o uso da memória como instrumento de desenvolvimento social e cultural.
Mais informações ou agendamento de depoimento na sede do museu, em São Paulo, podem ser feitas pelo telefone (11) 2144-7169 ou pelo e-mail pontodecultura@museudapessoa.net.
FONTE: Correio da Bahia
Por: Margareth Xavier
Nenhum comentário:
Postar um comentário