Marco Nanini vive, no palco, o papel eternizado por Paulo Gracindo na TV
Com a alma lavada e enxaguada na ambição política, Odorico Paraguaçu, o mítico prefeito de Sucupira, está de volta, com a mesma verve particular e ainda famoso por cortejar donzelas praticantes: estréia hoje, no Teatro das Artes, no Rio, O Bem Amado, peça escrita em 1961 por Dias Gomes, que também a adaptou como telenovela, em 1973, o primeiro folhetim a ser gravado em cores no Brasil. ''''O mais surpreendente é que, mais de 40 anos depois, a história continua atual'''', comenta o ator Marco Nanini, que interpreta o coronel que combate os cachacistas juramentados, aqueles que se opõem à sua obsessão de inaugurar o cemitério em uma terra em que, curiosamente, as pessoas deixaram de morrer.
Nanini interessou-se pelo projeto quando foi convidado para viver Odorico em uma versão para o cinema, dirigida por Guel Arraes e produzida por Paula Lavigne. Deixando de lado os entretantos e partindo pros finalmente, no típico linguajar de Odorico, ele percebeu que a trama continuava rica e, como sua origem estava nos palcos, nada melhor que promover também uma nova montagem teatral.
Na verdade, o projeto poderá repetir o mesmo trajeto de sucesso de Lisbela e o Prisioneiro, peça que Guel Arraes primeiro montou no teatro para depois transformar em filme para o cinema. O percurso, agora, será um pouco diferente. A começar pela direção - Enrique Diaz, da Cia. dos Atores, foi convidado para comandar a encenação, da qual participam também alguns membros da sua trupe. Arraes ficou responsável pela produção artística e pela adaptação, ao lado de Cláudio Paiva.
O original de Dias Gomes, aliás, foi pouco modificado. ''''Algumas cenas longas foram enxugadas, mas a essência, que são a trama e principalmente os diálogos, foram mantidos'''', comenta Nanini, que ouviu gravações de discursos de políticos dos anos 1950 e 60, além de acompanhar a desenvoltura dos atuais em programas de tevê, para compor seu personagem. ''''Fiquei impressionado com o gestual excessivamente dramático de alguns, como Roberto Jefferson, com a paciência tipicamente política de outros, como Antônio Carlos Magalhães.''''
Um dos maiores atores brasileiros em atividade, Nanini não vive da glória - ao contrário, transforma a criação de um personagem em um fatigante processo de pesquisa, tudo documentado em um caderno que se transforma em sua pequena obra de arte. Ali, faz colagens e desenhos alusivos às peça, buscando criar o histórico do homem que vai viver em cena.
Assim, a partir da descoberta de uma imensa coleção de frutas nordestinas, Nanini avançou e chegou à uma região na Bahia, próximo de Barra Grande, onde se produz azeite de dendê - em uma linha do texto original, Dias Gomes faz menção ao produto. ''''Para mim, é importante ter uma intimidade com o personagem'''', observa o ator que, para se caracterizar como Odorico, utiliza uma pequena peruca loira no topo da cabeça. ''''O ideal seria escurecer todo o cabelo, mas seria a mesma solução utilizada com Paulo Gracindo, que eternizou o papel na televisão.''''
Nanini, aliás, evitou, em seu processo de criação, rever imagens da novela. Embora seu Odorico continue sua luta para inaugurar o cemitério, o cenário político hoje é diferente e é o que a montagem pretende mostrar. ''''A novela é um patrimônio afetivo cultural brasileiro, mas hoje buscamos um Nordeste mais pop'''', comenta Enrique Diaz, que teve apenas cinco semanas para montar o espetáculo, quando normalmente desfruta vários meses de decupagem, junto da Cia. dos Atores.
A pressa, no entanto, serviu como estímulo. Ao adotar o atual universo cultural nordestino, Diaz, ao lado de Guel Arraes, montou um curioso caldeirão de influências que se casam perfeitamente em cena. Responsável pela direção de arte e pela cenografia, Gringo Cardia, por exemplo, apostou tanto na exuberância das cores como no apelo popular pela religião - o cenário é giratório, alternando tanto imagens de santos como grafismos feitos em jornal por um jovem artista do Recife.
Já a trilha original ficou a cargo do DJ Dolores, músico sensível aos valores da tradição, mas sempre tentado por arroubos experimentais, o que faz a montagem ser emoldurada tanto por ritmos tradicionais como por batidas modernas.
E ainda o belo figurino criado por Antônio Guedes que, inspirado no tropicalismo, conseguiu que, separadamente, cada personagem mantivesse sua particularidade, mas, juntos, todos apresentassem uma unidade nas cores e nos tecidos. É particularmente interessante a pesquisa que ele realizou para os ternos vestidos por Odorico Paraguaçu, que começa com o branco, passa pelo azul e o amarelo, até chegar ao negro.
''Embora seja um político abominável, Odorico está cercado da mais rica cultura'', observa Enrique Diaz, na direção de um projeto que comprova a eficiência do teatro em, além de divertir, também conscientizar o espectador. Como pretendia Dias Gomes.
FONTE: O Estado de São Paulo
Por: Ubiratan Brasil