SÃO PAULO - Foi um espanto quando, em junho de 2004, após a morte do grande pianista cubano Rubén González, o que restou do Buena Vista Social Club retornou ao Brasil com um substituto de uns 30 anos, um sujeito cheio de ginga, com pinta de astro do hip-hop. A desconfiança só durou até Roberto Fonseca iniciar seu primeiro solo - a platéia no Via Funchal terminaria aplaudindo de pé o "intruso". Uma noite memorável, que marcava a entrada de uma nova estrela na constelação do piano cubano, já lendária - habitada, entre outros, por Bola de Nieve, Bebo Valdés, o próprio Rubén Gonzáles, Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba.
Desde então, Robertito Fonseca voltou ainda duas vezes ao Brasil, uma delas acompanhando o cantor Ibrahim Ferrer e, em outra, a cantora Omara Portuondo. Também veio sozinho, com sua própria banda, ao Bourbon Street.
Foi aí que ele se associou ao pernambucano Alê Siqueira, uma espécie de ponte móvel entre Brasil e Havana, e que produziu seu disco Zamazu, lançado com admirável sucesso na Europa no ano passado. O CD chega agora ao Brasil via Biscoito Fino. "Nossa amizade começou quando ele produziu o disco de Omara Portuondo. Logo que começamos a trabalhar juntos, gostei demais do jeito dele. Ele sabe o que o músico quer. Não se importa com qual linguagem está lidando, sabe respeitar todas", disse Roberto Fonseca, ao Estado, por telefone, desde Cuba, na semana passada.
Piano como tambor
Roberto Fonseca é rápido e objetivo em suas opiniões. Linguagem, por exemplo, ele explica assim: "Cada músico tem seu modo de se expressar, e é a isso que chamamos linguagem. Sei que tenho um estilo diferente. Toco piano como se fosse tambor, mas à minha própria maneira. Isso se dá porque sempre gostei muito de percussão, desde tablas a timbaus."
Há dois anos, Fonseca, que tem agora 32 anos, tocou no desfile da estilista francesa Agnès B, no Men’s Fashion Show de Paris. Foi nessa ocasião que ele disse algo que pode ser lido como seu manifesto pessoal: "Todo mundo imagina um músico cubano com charuto, chapéu, camisa de flores e mojito. Não bebo nem fumo. Quero que saibam que em Cuba não há só praia, sol, palmeiras e maracas. Também temos dias chuvosos."
Isso significaria que o estilo de Robertito Fonseca em Zamazu é menos solar e celebrativo do que o de seus colegas cubanos? Nananina. Zamazu é simplesmente um dos melhores lançamentos do ano, e a cadência de Cuba se ouve em cada acorde.
Em Cuba e no Brasil
O álbum foi gravado em Cuba e no Brasil, em janeiro de 2006, quando Fonseca esteve no País com Omara (e quando gravou um disco inédito acompanhando Omara e Maria Bethânia, já no forno para sair), e tem participações de Carlinhos Brown e Toninho Ferragutti, dos cubanos Guajiro Mirabal, Cachaíto López ("O maior de todos", segundo Fonseca), Ramses M. Rodriguez e do espanhol Vicente Amigo. Traz ainda um duo como Omara e uma das últimas gravações do grande Ibrahim Ferrer.
É uma bela homenagem. "O sonho que sonhou Ibrahim Ferrer se converteu em realidade", diz o próprio cantor na letra, que é sua. "Perdi um grande amigo. Quando tocávamos, ele era sempre uma dádiva, porque se doava integralmente. Ele me ensinava o tempo todo. Foi um músico incrível", diz Roberto.
Candomblé cubano
Adepto da santería, o candomblé cubano, o orixá de Roberto Fonseca é Xangô, um soberano por excelência, o rei do trovão. "Sempre serei da santería. Para mim, a espiritualidade é o fator mais importante que tem na música", diz Fonseca.
Pode-se deduzir então que ele demonstraria predileção pelo tradicional em sua música, mas é uma dedução errada: Roberto é a própria modernidade. Adora a variante original do drum’n’bass, o jungle, além de funk, techno e hip-hop. "Um dia ainda farei um disco de jungle", diz o músico. "Interesso-me pela fusão e pela improvisação. Gosto da música folclórica, mas meu interesse é colocá-la em contato com outras tradições modernas, como o hip-hop, o funk, o jazz, o drum’n’bass", disse.
Parte de sua experiência gravando no Brasil e com brasileiros foi tentar aproximar a música afro-cubana da afro-brasileira. Talvez venha daí o estranho nome que escolheu para batizar o disco, Zamazu. "É como a palavra dada, que originou o dadaísmo. Não quer dizer nada. É uma palavra que minha sobrinha Paola, de 6 anos, usa com a família quando quer nos fazer crer que está falando uma língua estrangeira", ele conta. "É como se procede na música: inventa-se a linguagem com a qual a gente quer se expressar, e ela é compreendida, mesmo que nunca tenha existido."
Influência da bossa nova
O jazz, que também está incrustrado em seu estilo, não acontece por acaso. "Ouvi muito Thelonious Monk, Bill Evans, Oscar Peterson, Keith Jareth, que são os grandes do seu instrumento no jazz. Não tenho influência, entretanto, de Chucho Valdés, que é cubano, e que aprecio muito, assim como me encanta o estilo de Tom Jobim. Acho que tenho mais influência da bossa nova", ele considera.
"O primeiro disco, de 1998, é muito jazz fusion, marcado por minha admiração por Herbie Hancock e minha descoberta do Weather Report. Meu novo disco resume todas essas experiências e vai mais longe", considera.
Zamazu, que é seu quarto disco (os primeiros, pela ordem, são Tiene Que Hacer, No Limits e Elengó) abre com uma cantora, Mercedes Cortes Alfaro, fazendo um número a capela, com uma voz ancestral. "É minha mãe cantando um fragmento de uma missa popular. O significado é simples: é uma reza para trazer a paz e levar embora a energia ruim", explica. Robertito estudou piano desde os 8 anos, em sua Havana natal. Cursou três conservatórios. Toda a família é de músicos. "Minha mãe foi cantora de coral. Meu irmão mais velho é pianista. Outro dos meus irmãos toca bateria. Meu avô era percussionista."
Cantos orientais
Outra presença forte no seu disco são as faixas de textura orientalizada, como Congo Árabe, que usa o darbouka, tambor árabe, e um violão flamenco. "Não é música muçulmana, mas da cultura oriental em geral. Gosto muito, porque nos cantos orientais, há muita paixão, tudo é muito transparente", diz.
A recepção ao trabalho, na Europa, foi calorosa. Paola Genone, no L’Express, disse o seguinte: "Nesse disco impregnado de beleza e paixão, o pianista e cantor cubano Roberto Fonseca, de 31 anos, consegue reconstituir, canção após canção, o imenso mosaico de tradições musicais que habitam seu país pós-escravidão." A resenha da BBC inglesa foi ainda mais entusiasmada: "Zamazu é um set supervariado e bem seqüenciado, que deixa uma forte impressão de quem é Fonseca e promete muito mais para o futuro." Já o The Guardian, também britânico, assinalou: "É natural um notável pianista ganhar resenhas favoráveis após substituir o grande Rubén González, mas Roberto Fonseca é ainda mais especial, mesmo para os padrões cubanos."
Piano e skate
Se Don Rubén González (1920-2003) tratava o piano com carícias, com os dedos quase levitando sobre as teclas, Robertito parece cair sofregamente sobre ele, como se estivesse descendo uma ladeira com um skate. "É na rua que nascem todos os sons, e isso me interessa", diz.
O novo prodígio do piano cubano também se espanta com todas as perdas que a música cubana tem experimentado recentemente: além de González, Compay Segundo e Ibrahim Ferrer, também o jovem percussionista Angá Diaz. "Todos morremos um dia, mas é incrível como isso está se repetindo", considera. "São grandes amigos que se vão, mas que não são esquecidos."
Ele diz que já está em negociação uma nova turnê pelo Brasil para mostrar Zamazu com sua banda - Javier Zalba (clarineta, flauta e saxofone), Omar González (contrabaixo), Joël Hierrezuelo (percussão) e Ramsés Rodríguez (bateria).
FONTE: O Estado de São Paulo
Por: Jotabê Medeiros