quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Tom Zé faz um relato autobiográfico e traça sua trajetória

Dividido em quatro partes, o livro "Tropicalista Lenta Luta", do cantor e compositor Tom Zé, reúne seus textos e letras. Leia capítulo abaixo.

O início é um relato autobiográfico em que o músico traça sua trajetória desde a Bahia. Depois estão reunidos textos publicados na imprensa, uma carta e suas as letras. A quarta parte é a transcrição de uma longa entrevista, concedida ao músico Luiz Tatit e ao editor da Publifolha, Arthur Nestrovski. O título traz também a discografia completa de Tom Zé e uma biografia musical. Veja entrevista com Tom Zé

*

A TROPIVISTA DE IRARÁ
PANIS ET SEMENTES

Epí(carmo)grafe
O comos me comedia
farsando cena e soneto.
Na rua rude arrelia
é canto, é coro, é coreto.


Pelo telefone:
- Trinta laudas sobre Tropicalismo, Tom Zé. Um mês de prazo.
- Pera aí, estou ocupado, depende de...
- Não depende de nada. Vá lá,.. dias.
- O quê? Mas já há muitos livros sobre o assunto. O que é...?
- É com total liberdade!

Fiquei chocado. Ela de novo, essa misteriosa benesse que tanto me mete medo. Os escritores, não sei o que pensam, mas em música liberdade é um inferno. Prefiro o cerceamento completo, que não deixa uma polegada para respirar. Quando a encomenda vem especificada, restringente, castradora, é um alívio: a canção já está quase pronta. Na minha experiência foi sempre assim. Liberdade, quanto menos, melhor. Prometo exemplos. Depois. Agora, vamos começar: A corrente é..., vamos ligar. E lá vai um, e dois, e três. E já.

CARTA FROM SÃO PAULO AOS JOVENS E COMPOSITORES EM GERAL
Meus queridos:
Quando faço um show para vocês, molecada que me segue, grande parte do público aspira justamente por público. Gosto dessa confiança: presenteiam-me folhetos, poemas, cordéis, hai-cais. Confiam-me a leitura de livros de poesia e principalmente me oferecem muitos cds. Recebo cerca de cinco em cada show. Eles são o nosso assunto aqui: Na maioria desses cds, o jovem autor tem mais dotes musicais do que eu. Seja uma melhor técnica instrumental, seja a potência vocal, seja uma vocação de bom melodista. Para incentivá-los, provo como isso é verdade.

Férias escolares. Irará. Julho...... Minha namorada soube que eu fazia canções. Pediu para ouvi-las. Fiquei animado. Peguei o violão, fui encontrá-la. Durante toda uma tarde não consegui cantar. É isso aí. Fiz tudo que era possível, a voz não saía. Não consegui. Saí de lá morto, com uma impressão de fracasso tão grande que os nervos não processavam logo a informação, para aumentar minha chance de sobreviver. Naquele dia desisti de música. Minha carreira entrou em crise antes de nascer. Abandonar foi o que resolvi. Nunca mais fiz uma canção.

OS GOZOS EMUDECERAM
Música? Não sei, não quero saber, e tenho raiva de quem sabe. Não me fale desta praga. A mente é especialista nesse tipo de trapaça: dedica-se febrilmente a uma quimera preciosa, enquanto jura que nunca mais passará na porta daquela desafeta. No porão da minha cabeça dois gigantes se enfrentavam: de um lado, o gelo da covardia burguesa; do outro, na parte oposta do eu, cozinhava-se uma idéia herética. No combate entre essas duas forças pendulava eu, horrorizado. Passou-me despercebido que a partir de certo momento não era mais a música que eu odiava, e sim a grande perda que sairia de braço dado com a nova idéia. Uma vez que, para praticar uma des-canção, uma anticanção, eu teria de renunciar à beleza beleza ligada a tudo que era do canto e do cantar.

Esses gozos emudeceram.
Mas aquela tarde infeliz com a namorada não teria nenhuma importância, se não fosse provocadora de uma conseqüência inesperada: o começo do meu romance com o Tempo e o Espaço.
Chamemos de cantiga o que passo a tentar fazer.

HORA DA MERENDA
[Refrescos; entra o cantador nordestino]
Cantador:
Viver é lasso e escasso
se passo lance por lance
o rumo, enredo e romance
do enlace tempo e espaço.
O cantador nordestino
sabe sonhos de menino.
É tal quimera que faz,
o pequeno tão audaz.
Quanto mais eu espaçava
espaço dentro do tempo
mais forte o tempo empurrava
aquele, meu corpo adentro.
E Circe a musa despede
me fusa desmelodia;
de Shelley cai-me o trompete
Roland'A Torre Sombria.
Mas mimo me parafusa
encarna-se no meu carma,
me puxa de Siracusa
no barco de Epicarmo.

[Sai o cantador; a ama oferece guardanapos; limpando a boca, os devotos desta carta podem meter o dente no meu primeiro osso.]

PRIMEIRO OSSO
Inicialmente, quero apresentar-lhes o tempo. Este terror. Ele me atacou primeiro e foi meu principal inimigo desde a infância. Aqueles enormes dias vazios, cheios de tédio. Achar conteúdo para cada hora era uma tarefa gigantesca. Silêncio, paz, quietude: tudo insuportável. Hoje, passaram-se anos e por fatalidade vivo presentemente o mesmo problema invertido, pois é proverbial que no tempo psicológico do palco o átimo contém a eternidade. Durante um show


Cada segundo tem décimos, centésimos,
Tem pêlos e cabelos de milésimos.


Entre a infância e o palco de hoje vim aos solavancos, levado pelo tempo e depois pelo espaço. Erros e tropeços. Trop trop que em reiterados e repetidos feedbacks tornaram-se lições. Polições. Com sinceridade: foi uma sucessão de contrapassos e contratempos. Elos incompletos, indecisões, inanição, pânico. Demorou muito para que eu divisasse, naquele conjunto, os traços de uma fisionomia bondosa. Certo dia, um golpe de vista mais geral mostrou que quando todas as dificuldades se agregavam, justamente então, emergia uma aliada. Ela me tomou pelas mãos e me levou a um terreno firme. Ela, com cujo apoio me converterei num profissional: a deficiência.
[Mais guardanapos; os apóstolos limpam a boca.]

"Tropicalista Lenta Luta"
Autor: Tom Zé
Editora: Publifolha
Páginas: 288
Quanto: R$ 39
Venda: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou no site da Publifolha


FONTE: Folha de S. Paulo

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